quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Ombra e Lutz... um trecho da "entrometença" (introdução em occitano)

    (...)Segurei meu cavalo até que Mathieu e Bonnet me alcançassem, o que fizeram com a maior cautela e silêncio. Apenas eu, um reles soldado que foi elevado à condição de cavaleiro pelo conde de Tolosa, os guardava. Eu, Sebah, conhecido como le Roc, que agora olhava para além da pequena clareira coberta de neve, onde os troncos de pinheiros estavam envoltos pela bruma e nada além se via, assim como o caminho que acabávamos de passar. A neve caíra durante a noite, muito mais cedo que o previsto e, embora em pouca quantidade, foi o suficiente para cobrir o solo com uma fina camada de gelo. 
    – Temos que arriscar – falei, sabendo que cada minuto perdido significava mais perigo, já que as patrulhas do exército cruzado varriam a região durante o dia e havíamos demorado mais tempo do que o previsto na descida. 
    – Então vamos – falou Bonnet, já dando o primeiro passo. 
    – Parece que vejo vultos – comentou Mathieu. 
   – O nevoeiro produz seus próprios fantasmas – falei, montando meu cavalo, assim como eles, porque não precisávamos mais puxá-los por caminhos tão estreitos costeando a rocha, que era difícil acreditar que havíamos passado. Adiantei-me pela neve rala e as patas do cavalo começaram a quebrar a fina superfície de gelo sobre ela, fazendo um barulho que nos causava arrepios, como se todo o exército inimigo fosse acordar com aquilo.  
     Quando estávamos no meio da clareira, os fantasmas do nevoeiro apareceram, um a um, e paramos estarrecidos. Da direita para a esquerda, por entre grossos troncos, cinco cavaleiros surgiram, montados em animais enormes e cobertos com mantos, onde eram desenhados os estandartes de cada casa. Não eram soldados, nem routiers6 e parece que sabiam que iríamos passar por ali, o que me levou novamente a crer que havia traidores entre nós. Seus paramentos e estandartes desenhados nos mantos mostravam que eram da nobreza, embora um deles se destacasse como comandante dos outros. 
     Nossos cavalos pareciam pôneis diante daqueles portentos que soltavam vapores pelas ventas e estavam irrequietos, como se já pressentissem cheiro de sangue e morte. (...)


   (...)Aproveitando da estupefação do momento, enquanto o nobre cavaleiro começava a despencar do cavalo, tentando tapar a grande ferida com a mão esquerda, disparamos nossos cavalos na direção da floresta. 
    Demorou poucos segundos para os demais cavaleiros se recobrarem do susto e partirem em nossa perseguição. Era o que eu queria. Posicionando meu cavalo adequadamente atrás dos troncos maiores, esperei que os três primeiros passassem e, num giro rápido da montaria, derrubei o último, batendo com minha espada em seu peito. O som da lâmina explodindo na cota de malha alertou seus companheiros, que logo viraram na minha direção, mas viram apenas meu vulto sumindo na bruma. Com isso já conseguira livrar meus companheiros da perseguição mais próxima. Eu estava tomado pela luta. Jamais eu teria coragem de sequer ferir uma pessoa no meu estado normal, porém, a batalha faz com que sejamos rapidamente tomados por uma febre de invencibilidade, até nos tornarmos vencíveis. Naquele momento eu não era vencível, e em poucos minutos todos estavam caídos em meio à floresta. Não estavam mortos, mas alguns deles estavam bastante feridos. Meu cavalo era um corcel pequeno e ágil, enquanto que os deles eram gigantescos, mas lentos. Minha obrigação era seguir atrás de Mathieu e Bonnet, mas eu sabia que a poucos passos dali havia um nobre caído na neve, talvez morto, se não fosse rapidamente socorrido. Era o que estava ferido mais perigosamente.                              
         Cutuquei meu cavalo, que respondia com rapidez, e em poucos segundos eu pulava para a neve, ao lado do cavaleiro. Usando de toda minha força, sempre descomunal, levantei-o, embora estivesse coberto de placas de metal e cota de malha, e levei-o para uma pedra um pouco mais alta. Removi o manto de seu cavalo e o envolvi, depois apanhei grandes punhados de neve, que se acumulava mais nas beiradas da pedra, e cobri a ferida sangrenta, causando ainda mais gemidos de dor. Ele só não morrera de hemorragia porque mantivera a ferida virada para baixo, em contato com o gelo, o que demonstrava sua experiência. Porém, se ficasse ali estendido na neve, morreria congelado, por isso eu o estava ajudando. Não queria carregar minha memória com o peso de mais uma morte. Meus bons amigos Anne Crestan e Pierre de Guilles passaram muitos anos me pregando o amor e a não violência, então, mesmo que eu me justificasse com a ideia de que havia apenas me defendido, sabia que não tinha agido certo segundo os preceitos do Cristo. Mais uma vez não havia conseguido dar a outra face. Como diria o bom abade Amadeu: uma espada nunca poderá fazer totalmente o bem! 
      Quando eu virei as costas para ir embora, sabendo que os cavaleiros que deixara caídos na floresta logo nos alcançariam, ou mesmo alguma outra patrulha do exército cruzado, o cavaleiro, com um fio de voz, me chamou:
      – Sebah...
      Sebah! Então ele sabia meu nome? Não demonstrou que me conhecia antes, quando me atacou.
      – Sim, meu nome é Sebah. Pensei que não me conhecia. 
    – Vamos... antes de partir... remova meu elmo... 
     Obedeci. Agora sua voz rouca estava quase inaudível. Com cuidado soltei as plaquetas metálicas e abri o elmo, depois o retirei. No mesmo instante ele sorriu e pousou sobre mim a luminosidade de seus olhos, profundamente azuis. O choque emocional que senti fez com que minhas pernas se dobrassem e eu caísse de joelhos. Como podia ser ele? Não era possível! (...)

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